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O abismo social escancarado pelo Enem 2020

Movimentos para adiamento do Enem expõem desigualdade social e racial entre estudantes. Datas para exame estão sendo votadas sem discussão acerca da melhora no ensino a distância e inclusão de minorias.

Por: Isabella Guedes Cavalcante¹

Diadema, 28 de junho de 2020

 

No dia 20 de maio, em nota oficial no portal do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em decorrência das demandas da sociedade e às manifestações do Poder Legislativo em função do impacto da pandemia do Coronavírus no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020, o Inep e o Ministério da Educação (MEC) decidiram pelo adiamento da aplicação do exame nas versões impressa e digital, até então previstas para o dia 01 e 08 de novembro e 22 e 29 de novembro, respectivamente. Após a decisão, foi informada a abertura entre os dias 20 e 30 de junho de uma consulta pública aos participantes do ENEM 2020 para escolha do período de aplicação das provas por meio de uma enquete a qual poderá ser indicada dentre três datas que variam entre 30, 60 e 180 dias, após data original do exame, sendo elas:


➢ Enem impresso: 6 e 13 de dezembro de 2020 / Enem Digital: 10 e 17 de janeiro de 2021

➢ Enem impresso: 10 e 17 de janeiro de 2021 / Enem Digital: 24 e 31 de janeiro de 2020

➢ Enem impresso: 2 e 9 de maio de 2021 / Enem Digital: 16 e 23 de maio de 2021


Os movimentos que sucederam o adiamento do ENEM foram organizados por estudantes, docentes, entidades estudantis e até influencers, inspirados, principalmente, pela tag #AdiaEnem promovida pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e União Nacional dos Estudantes (UNE) que realizaram petição on-line e tuitaço nas redes, com apelo de atrasar a data do principal vestibular de ingresso no ensino superior do Brasil. Além de apresentar dados que escancaram a realidade dos estudantes brasileiros menos favorecidos em relação aos demais, baseando-se nos impactos que a pandemia e as aulas à distância estão causando na preparação dos estudantes, especialmente os de baixa renda, que em alguns casos sequer têm acesso à internet e a recursos de tecnologia fora do ambiente escolar.

“O Enem é uma porta de entrada para a democratização do acesso ao ensino superior, principalmente por meio de programas como o Prouni e o Sisu. Manter as datas da prova, que foram pensadas antes da pandemia, seria uma injustiça.” - UBES, 2020.

A pandemia obrigou as escolas a se adequarem a uma realidade de ensino a distância incapaz de atender 39% dos domicílios brasileiros que ainda não têm nenhuma forma de acesso à internet. E que além da falta de estruturas físicas para estudo, como ambiente apropriado e os recursos necessários para acesso às plataformas educacionais em suas casas, também é preciso levar em consideração a estrutura psicológica em que os jovens estão inseridos e como estarão ao final disso tudo, principalmente para quem teve familiares doentes, falecidos ou pais desempregados.


Em entrevista à CNN em 15 de maio, o ex-ministro da educação Abraham Weintraub, afirmou que o Enem “não é feito para atender injustiças sociais e, sim, para selecionar os melhores candidatos”. Weintraub, com essa fala, não só ignora as desigualdades educacionais do país, como ainda promove e divulga uma campanha publicitária afrontosa a qualquer estudante pobre que um dia sonhou em ingressar em uma universidade. A problemática em si só piora quando o ex-ministro em conversas com senadores completa dizendo que “o Enem não foi feito para corrigir injustiças”.


Concordar com a fala em si não é o problema, pois de fato o Enem por si só não repara a desigualdade social, mas hoje vem sendo um importante portal para que, principalmente, jovens pretos e periféricos entrem na universidade. Ao desconsiderar todas as dificuldades para o jovem da periferia e achar que o ensino a distância supre o aprendizado presencial, esse portal se fecha, afirma Débora Dias, coordenadora dos cursinhos pré-vestibular comunitários da Uneafro, na Fazenda da Juta, zona leste de São Paulo, em entrevista ao El País: “Tivemos muitos avanços com a política de cotas, mas quando você ignora as dificuldades que esses alunos estão sofrendo, você reafirma que a universidade é um lugar onde eles não devem estar”, acrescenta.


Em meu entendimento, o ideal para definição da nova data do exame seria adequá-lo ao calendário escolar, isso quer dizer que somente após a volta às aulas da rede pública de ensino, pelo menos após um semestre completo, deveria acontecer o Enem. Pois, embora todos os estudantes, de alguma maneira, estejam sendo afetados pela suspensão de aulas presenciais, são aqueles em situação de maior vulnerabilidade social que se distanciam ainda mais da linha de chegada à universidade. E mesmo aqueles beneficiários das cotas no Sisu, têm a tendência de encontrar processos ainda mais acirrados, já que não é um grupo homogêneo e que existem desigualdades internas, gerando mais desvantagens ao menos favorecidos.


Dentre as universidades paulistas, a USP, Unicamp e Unesp, que oferecem a maior parte das vagas via vestibular, anunciaram que aguardam a data definida do Enem para que possam definir seus calendários acadêmicos com acordo entre si e o Inep, já que algumas destas dependem dessa nota para computar seu sistema misto, além de evitar prejuízos aos estudantes que queiram realizar outros vestibulares. No contexto da pandemia, que exige o distanciamento social para controlar a contaminação, é muito difícil pensar em tirar mais de 6 milhões de estudantes de casa para reuni-los em salas de aulas lotadas, por horas, para realização da prova, mantendo o distanciamento social necessário e um baixo risco de contaminação com tantas pessoas envolvidas na aplicação e organização das provas. Questões sanitárias têm de ser pensadas, e até o momento nada foi declarado. Levar em conta todos esses aspectos pode nos ajudar a refletir quando, de fato, o exame deve acontecer baseado em discussões e tratativas técnicas, para alcançar o objetivo de educação de qualidade e redução de desigualdades para o país.


- Nota final, com contribuição dos editores: Abraham Weintraub deixou o Ministério da Educação em junho, mas antes, como seu último ato, revogou uma portaria que previa o estabelecimento de cotas para negros e indígenas na pós-graduação, como mais um dos atos controversos desde sua entrada no comando da pasta, afirmando sua falta de compromisso com o combate às desigualdades e discriminações raciais históricas no Brasil. Mais tarde, após sua saída, a pasta voltou atrás da decisão. Weintraub, em nosso entendimento, contribuiu substancialmente no crescimento da desigualdade e do declínio de uma educação nacional democrática, universal e de qualidade. Em sua estadia, de pouco mais de um ano à frente do MEC, o ex-ministro só fez provar a necessidade de enfrentamento contra um sistema opressor. Paulo Freire vive, e seus ensinamentos e pedagogias seguem como combustível para nossa luta e esperança. Agora, esperançamos para que o novo chefe da pasta dê um norte para o MEC, e gere menos impactos e prejuízos que seu antecessor.


¹ Ambientalista apaixonada por pessoas e suas interações. Participa ativamente de projetos de mudanças sociais, com olhar de curiosidade sob tudo que vê.



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