A crise da COVID-19 como exemplo para repensarmos o ensino de ciências
Por: Arnaldo Antonio da Silva Junior¹
De início posso escrever de maneira bastante abreviada, que a educação é um processo de desenvolvimento da autonomia, cidadania e senso crítico dos sujeitos. Isto, provavelmente pouca gente discorda, ainda que vivamos em uma época na qual nos surpreendemos frequentemente com os objetos de discordância das pessoas, como é o caso da negação do formato esférico da Terra (cujo tom jocoso ainda não consigo dissociar). Também posso afirmar que a educação é um processo de longo prazo. Longuíssimo prazo na verdade. O que em outras palavras implica no aprendizado por toda a vida, pois como diz Brandão (1985), não há como escapar da educação. Minhas angústias atuais a respeito da educação começam quando passo a refletir sobre as possíveis lacunas do processo educativo, sobretudo, no caso dessa coluna, do processo de educação científica.
Agora lhe convido a me acompanhar no seguinte raciocínio: a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou pandemia de COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus; líderes por todo o globo adotam protocolos de combate à doença, de acordo com as circunstâncias específicas de cada região atingida; profissionais de saúde se dedicam em um esforço hercúleo para cuidar da população e alertam para as necessidades de tomarmos as medidas de segurança; cientistas caracterizam o vírus, seu padrão de infecção e os impactos na sociedade; os serviços essenciais continuam em vários países, como distribuição de alimentos, supermercados e farmácias; campeonatos esportivos foram adiados, incluindo os jogos olímpicos; cerimônias religiosas acontecem via streaming; mudamos hábitos de consumo; entre outros fatos. E ainda assim, frente ao cenário apresentado, há aquele indivíduo que atribui mais credibilidade ao vídeo de um desconhecido no WhatsApp, que nega ou minimiza a crise, muitas vezes achando aceitável perder milhares de vidas.
Neste ponto retomo a educação. Acredito ser muito improvável que uma educação emancipadora permita que o sujeito confira mais credibilidade ao meme do Facebook do que à comunidade científica que trabalha com virologia, epidemiologia, infectologia, saúde humana e áreas afins. O que me parece é que há lacunas nos procedimentos do educar cientificamente, que são preenchidas por conclusões espúrias da realidade. Diante da situação atual, negar os perigos da infecção do novo coronavírus, deveria no mínimo, vir acompanhado de uma quantidade substancial de referências que contraponham ou refutem os especialistas, afinal como diz Carl Sagan, “alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”.
No meu papel de professor de Química, penso constantemente sobre como meu ensino científico pode ser melhor. Os jovens nas escolas aprenderam (ou deveriam ter aprendido) sobre os princípios da vacina: a relação entre agentes patogênicos, sistema imunológico e produção de anticorpos. Mas, será que eles aprenderam sobre método científico? Sobre as trajetórias que a pesquisa científica cumpre para chegar a conclusões? Sobre as etapas pelas quais passa um fármaco para que atinja um grau satisfatório de eficácia? Sem a pretensão de indicar a resolução indefectível para a educação científica, porém apontando uma possibilidade a ser melhor explorada por nós professores de Ciência, penso que concomitantemente à abordagem dos conteúdos científicos propriamente ditos, poderíamos trabalhar de maneira mais incisiva os métodos da Ciência, como o conhecimento científico é construído. Enfim, por que o cientista sabe isso? Como ele fez para saber aquilo? Concentrar mais energia para trabalhar os métodos da Ciência me soa uma alternativa muito válida para contribuir com o preenchimento das lacunas, ainda que, obviamente, o empreendimento de ênfase no ensino metodológico não encerre toda a problemática.
Como um último exemplo, me permito fazer uma reflexão final utilizando o cinema, do qual sou grande apreciador. Quando falamos sobre ficções científicas (mas não somente), costuma-se usar as expressões “suspensão da descrença”, “suspensão voluntária da descrença”, entre outras, que significam em síntese, ignorar regras do mundo físico real e assumir como verdadeiras as regras impostas pelo universo fantasioso da ficção em questão. Isso ajuda a “entrar” na história. Acredito que parte dos méritos de uma boa ficção científica é saber equilibrar elementos mundanos e fictícios, de modo que possamos embarcar naquele mundo, estimulando a imaginação, mas que também guarde alguma coerência e mantenha raízes na realidade. No caso da presente crise e pode-se dizer para outros assuntos também, chegamos ao ponto onde há pessoas que acreditam em qualquer discurso, dependendo do porta-voz. Nestes casos, a “suspensão da descrença” está sendo arremessada a níveis estratosféricos, perdendo o contato com a realidade e então, as lacunas se revelam abismos. A educação científica é um processo capaz de reaver a sensatez e que pode colaborar com (re)construção da autonomia que me referi no começo. A humanidade está em mobilização para superar a pandemia. A ignorância e o fanatismo não devem prevalecer sobre a educação, o conhecimento, a ponderação, a coerência e o valor humano. Simplesmente não devem.
Sugestões de leituras: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1985. SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Companhia das Letras, 2009.
¹ Mestre em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Campus Diadema-SP. Graduado em Química, professor da Rede Pública do Estado de São Paulo e colaborador do Observatório de Educação e Sustentabilidade da UNIFESP. E-mail: arnald.jr@hotmail.com
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