A influência da quarentena em minhas concepções pedagógicas
Por: Claudia Benitz¹
São Paulo, 15 de junho de 2020
Em meio ao caos que se apresenta, os sentimentos de impotência e medo assolam o planeta. Diante deste grande desafio, a humanidade se abriga em seus lares, se afasta de seus entes queridos, seu trabalho, seus sonhos... E é em meio a este panorama que me encontro neste momento, repleta de desafios, encontrando na tecnologia uma forma de interagir com o mundo.
Sou da década de 60, pode soar clichê, mas já vi grandes passos da humanidade serem dados à minha frente: visita à lua, TV colorida, fac-símile, máquina de escrever elétrica, computador, câmera digital, celular, internet, entre outros. Essa enxurrada de avanços me constituiu enquanto ser flexível, que se adapta e se reinventa a cada dia. O tempo, que sempre correu à nossa frente, impiedoso e inexorável, hoje é nosso aliado, passa por nós acenando e nos convidando a repensar nosso dia de forma criativa, nos tornando mais seletivos com relação à nossa alimentação: corpo, alma, intelecto...
O consumismo desenfreado puxa o freio de mão, a TV se submete a um click e já não nos impõe sua programação que compactua com os princípios burgueses, alienadores e castradores. A globalização impulsionada pela tecnologia é nos dias de hoje, a nossa salvação e a nossa perdição também. Tudo na vida tem dois lados, prós e contras. Na mesma medida em que ela pode ter sido a grande mola propulsora para a disseminação da COVID-19, também nos permite a interação com o mundo, e são estas interações que nos constituem enquanto cidadãos ativos e críticos em nossa sociedade. São estas interações que tornam humanos.
E é neste momento em que me encontro, buscando me conectar com o mundo por meio da tecnologia. Agora, ela não é mais um grande desafio a ser vencido, mas uma aliada, uma ferramenta que me auxilia a refletir. E dentro dessas reflexões, penso sobre o quanto preciso sair dessa quarentena transformada, reinventada. Esse divisor de águas em minha vida não pode ser em vão. Minhas reflexões permeiam os vários setores da vida: intelectual, espiritual, emocional, físico, profissional. E percebo que todos estão interligados, foram sendo tecidos em tramas, minuciosamente trabalhados e estão fortemente imbricados. No setor profissional, por exemplo, Sou professora de Educação Infantil, na rede municipal de São Paulo, e neste momento de quarentena sinto falta das crianças e de como aprendo e cresço com elas.
Penso que não se pode conceber Educação Infantil e nenhum tipo de educação de forma segmentada, a criança é um sujeito real que se constitui a partir de suas interações sociais no mundo. E que mundo é esse? Um mundo, um planeta, que grita por socorro, pedindo ao ser humano que pare de maltratá-lo, poluindo mares e rios, jogando fumaça através de suas “chaminés” incansavelmente, produzindo lixos que demoram séculos para serem decompostos e extinguindo espécies que coabitam este planeta há milênios, maltratando sua própria raça com as desigualdades sociais, de gênero e cor. E é neste cenário, como pano de fundo, que ando refletindo sobre a vida e sobre minhas práticas.
A conexão com a natureza se faz presente em mim desde sempre. E penso que este maravilhamento que sinto ao observar uma borboleta se libertando do casulo, deve estar presente no meu olhar, nas minhas atitudes, nas minhas intenções ao planejar uma atividade e, principalmente, no momento em que a proponho às crianças. Permitir que o conhecimento seja emancipador de pensamentos. E estar vigilante para que o brincar esteja sempre presente. É preciso nutrir suas almas, e penso que a mãe natureza pode me auxiliar muito nesta tarefa. E refletindo sobre estas questões, me remeti a uma roda de conversa onde uma menina de três anos relatou o alagamento de sua casa durante uma chuva.
“O rio encheu e entrou na minha casa. A água estava muito suja, estava preta. O rio encheu porque o homem joga lixo no rio.” (Heloísa).
Essa provocação se materializou no Projeto Rei Midas, no CEI Rubens Granja. O que fazer com essa agrura da vida, esta nuvem que estorva a visão de uma criança aos seus três anos de idade? As abordagens foram as mais diversas, lembro-me que levei um cesto de lixo para o centro da roda de conversa que elencava as atividades a serem realizadas no dia. Questionei as crianças sobre o destino daquele lixo e percebi o grande ponto de interrogação em seus olhos. Iniciamos ali uma visita aos diferentes espaços da escola, onde o lixo era cuidadosamente separado e acomodado. A visita gerou muita risada, o grupo olhava atento para todas as direções. Os cestos de lixo iam aumentando de tamanho na medida em que o lixo era classificado e agrupado. Quando chegamos ao final de nossa travessia, encontramos no pátio da frente um grande container de resíduos recicláveis. Eu extasiada naquele momento triunfal, ouvindo as crianças correrem em direção ao container com seus olhinhos brilhantes, gritando e apontando, mal percebi quando todos se posicionaram debaixo de uma frondosa árvore, apontando para os frutinhos pequeninos e amarelos que despontavam de seus galhos...
Neste momento, uma onda de frustração me acometeu, e percebi que toda a minha intencionalidade caiu por água abaixo. Em seguida, o projeto hibernou como um grande urso com o inverno que se fazia sentir e, com ele, o recesso. Quando retornamos, em agosto, o cenário era outro, as folhas estavam mais verdes, o chão mais seco e firme e as crianças tinham amadurecido muito. Amadurecimento esse passível de ser cortado com uma faca ao presenciar a cena que descrevo a seguir. Era frequente que alguns grupos do CEI não utilizassem o parque às segundas-feiras pela manhã devido à quantidade de lixo produzido pela comunidade que invadia o parque das crianças nos finais de semana. A coordenadora sugeriu que elaborássemos com as crianças uma atividade que abordasse este tema.
“Eu acho que o adulto não deveria jogar lixo no nosso parque.” (Luana)
“Meu vizinho joga lixo na minha janela.” (Miguel)
As crianças escreveram “cartas” que seriam entregues à comunidade num momento oportuno. Dias se seguiram até que o CEI foi invadido e o Quintal Sonoro, espaço muito apreciado pelos pequenos, foi destruído. A revolta estava instaurada, as crianças abrigavam um grito na alma que precisava ser ouvido! Fizemos cartazes, pegamos panelas, colheres, tampas. Colocamos nossas cartas num cesto e fomos para as ruas. Um panelaço ensurdecedor despertava a comunidade para uma questão política que desabrochava nas falas das crianças quando abordavam vizinhos e pedestres que circulavam pela rua, defendendo seus direitos de terem os seus espaços preservados.
E estas crianças tinham apenas 3, 4 anos... Chorei... Demorei em perceber que o que movia o grupo ia muito além do lixo, havia um comportamento político, “sangue nos olhos” de crianças guerreiras que buscam ser ouvidas e respeitadas. O projeto, não demorou a vingar, ele estava ali a todo instante, se revelando em seus corpos, ávidos para se materializarem em produções que reverberassem suas concepções, intenções, crenças e dores. O seu nome mudou, as crianças se nomearam “Patrulha do Lixo”. E suas vozes foram ouvidas e materializadas em produções de diferentes linguagens que permearam o projeto, finalizado numa grande mostra de arte para os pais, no encerramento do ano.
Não podemos, nem devemos subestimar as crianças e ficar cheios de dedos para estabelecer diálogos com elas. Devemos seguir seu fluxo, como um rio, como a natureza e abandonar nosso pensamento convergente com relação ao nosso papel enquanto educadores. Ficar atentos às suas “cem linguagens”, despertar nossos sentidos, “ter orelhas verdes”. E diante do que nos revela esta escuta, preparar espaços para receber nossas crianças e proporcionar-lhes grandes descobertas e brincadeiras que favoreçam sua aprendizagem, com muito prazer e com todo o direito do mundo!
¹ Pedagoga apaixonada por crianças e pelo meio ambiente. Atuante no movimento Upcycling e comprometida com os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), buscando sempre integrá-los nos projetos que desenvolve com crianças e bebês no Centro de Educação Infantil Vereador Rubens Granja – São Paulo/SP.
Comments